Publicação: 21/05/2011 08:00 Atualização:
Jacira de Jesus Vieira está feliz com a inauguração do Ponto de Memória, pelo qual batalhou com outros moradores: "Os jovens precisam conhecer a história dos pais deles para valorizarem o lugar onde vivem"
Crianças correm soltas pelas ruas da Vila Estrutural. Inocentes, ignoram o perigo de soltar pipa e brincar de pique entre carros e caminhões carregados de lixo, que trafegam sem respeitar a velocidade máxima permitida, em vias estreitas e sem sinalização. São pequenas no tamanho, mas livres como gente grande. Numerosas, sujam os pés de terra, respiram a poeira e se divertem, simplesmente, sem se importar com o que está ao redor. Muitas não conhecem outra vida. Os meninos e meninas são jovens demais para lembrar, mas nem sempre foi possível ter uma noite tranquila de sono nessa vizinhança.
Para que essa história não morra, a comunidade inaugura hoje o Ponto de Memória/Casa dos Movimentos, um projeto do povo em parceria com o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e o Governo do DF. A partir desta data, a memória da Estrutural estará guardada em um endereço fixo: Quadra 9, Conjunto E, Casa 21, um espaço alugado por várias associações que lutam por melhorias sociais na região. O Ponto de Memória já tem sua primeira atividade: a exposição Movimentos da Estrutural – Luta, Resistência e Conquista. A mostra terá instalações simples, mas que imitam a via Estrutural; pneus que simbolizam os manifestos, fotografias históricas expostas em suportes reciclados, trabalhos em grafite e muito mais.
A Cidade Estrutural de hoje tem escola e posto de saúde. Asfalto também começou a chegar, com anos de atraso. No local que cresceu ao redor do Lixão, cada vitória é fruto da luta dos fundadores dessa comunidade, nascida como uma invasão de catadores. Quem chegou recentemente talvez não imagine, mas, para conquistar alguns direitos, pessoas deram a vida pela fixação da Estrutural. Foi preciso manifestação popular e luta contra a polícia, que tentava conter a ocupação.
Pelo menos três morreram pisoteados pela cavalaria, de acordo com gente que participou desse movimento. Outros tantos se feriram e mancharam a terra de sangue em nome do desejo de ocupar um pedaço de chão. Muitos pneus queimados depois, o povo ganhou o mínimo de dignidade: abastecimento de água e luz. Era a década de 1990 e nascia, definitivamente, a Estrutural — embora a região tenha começado a ser ocupada bem antes disso, em 1960, logo depois da inauguração de Brasília.
Garrafas pet
Todo o material que documenta essa e outras histórias veio da própria comunidade. Quem tinha objetos e fotos que ajudavam a contar a saga da ocupação fez doações. Ontem, o grupo de voluntários acertava os últimos detalhes: pintava o chão e cobria um dos ambientes com uma cortina de garrafas pet (para lembrar o papel dos catadores e da reciclagem). A chuva fez nascer uma goteira no teto. Um balde improvisado protegia o chão de ser alagado, mesmo antes da inauguração.
Desde 2009, o Ibram treina a comunidade para criar esse espaço cultural. Foram promovidos vários encontros com representantes de movimentos sociais e o povo, para colher depoimentos e compartilhar pontos de vista sobre a história da Estrutural. Vistos por muitos como invasores que prejudicaram o meio ambiente, os moradores da cidade têm agora a chance de, por meio de seu próprio museu, mostrar ao DF um outro olhar sobre a luta.
No centro da mostra que será aberta hoje ao público, está o Diário Oficial de 10 de janeiro de 2008. Nele, há uma lista com os nomes de 7 mil moradores que foram declarados, nessa ocasião, donos dos lotes em que vivem. É a única prova que eles têm da propriedade. Exibem o documento como um troféu. O Ponto de memória servirá como um espaço cultural. Poderá ser usado por grupos de dança, música, pintura ou qualquer outro tipo de arte. Quem tiver objetos para doar também será bem-vindo.
Rap e grafite
Hoje, haverá apresentações de rap e grafite, esta com Tiago Francisco. É ele o autor da pintura na parede do Ponto de memória. Nela, em meio a catadores e pessoas que puxam carroças, um jovem parece segurar uma cruz enquanto chora. Tiago se baseou em fotos antigas da Estrutural para compor a cena. Quem se lembra bem desse tempo é uma das primeiras moradoras da cidade, a cabeleireira Flonice Teixeira, 56 anos, na Estrutural há 18. Ela apoiou a iniciativa de fundar um museu na região. “Isso é maravilhoso. Vejo muita gente que chegou agora reclamando. Eles não fazem ideia do que passamos.”
Convivência
Flonice mudou-se para a Estrutural depois de se separar do marido e ficar sem ter onde morar. “Aqui não tinha nada, nem luz, nem água. Só muita confusão, com a polícia que queria desocupar a área a mando do governo da época.” Ela lembra as noites em que foi acordada por policiais que batiam à porta das casas de madrugada em busca de armas. “Quando a gente abria, dava de cara com fuzil. Não respeitavam ninguém, todo mundo era tratado como bandido.” A cabeleireira participou de várias manifestações pelo direito à moradia. “Jogavam bomba de gás dentro da casa da gente. Eu lembro de estar com meu neto de seis meses de idade nos braços e tentar protegê-lo.”
Membros da comunidade se juntam para garantir que o projeto tenha continuidade: orgulho de cidadão
Membro da prefeitura comunitária, Jacira de Jesus Vieira, 33 anos, trabalhou muito pela construção de um espaço de convivência para a população local. “Aqui, não ganhamos nada na base do pedido, de mandar ofício para o governo. Foi tudo no grito. Os jovens precisam conhecer a história dos pais deles para valorizarem o lugar onde vivem”, afirma. Também contribuíram com o novo espaço integrantes de iniciativas populares, como o Movimento de Educação e Cultura da Estrutural, que alfabetiza jovens e adultos.
Segundo dados da Secretaria de Saúde do DF, em 2009, a taxa de homicídios na capital era, em média, de 34,1 casos por 100 mil habitantes. Na Vila Estrutural, o número chegava a 94,3. Estimular atividades culturais pode ser uma maneira de tentar conter a violência. “Com essa parceria, tentamos saber do que a comunidade precisa. Criamos museus fora da estrutura tradicional. O objetivo é proporcionar a essas pessoas o acesso ao direito de ter uma memória e assim valorizá-la”, explicou o presidente do Ibram, Josué do Nascimento Junior.
Cidadania fortalecida
A Estrutural é uma das 12 comunidades do país apoiadas pelo programa Pontos de Memória, resultado de parceria entre o Ibram e o Ministério da Cultura com os projetos Mais Cultura e Cultura Viva, do Ministério da Cultura; o Programa Nacional de Segurança com Cidadania (Pronasci), do Ministério da Justiça; e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). A meta é trabalhar pela reconstrução e o fortalecimento da memória social, a partir do cidadão e suas origens, histórias e valores.
Programação
Inauguração do Ponto de Memória
Hoje
9h
Abertura no centro comunitário (próximo à Praça da Estrutural)
10h
Museu cortejo (saindo do centro comunitário e chegando à Casa dos Movimentos)
11h
Lançamento da exposição Movimentos da Estrutural – Luta, Resistência e Conquista (Casa dos Movimentos – Quadra 9, Conjunto E, Lote 21)
12h
Apresentação de rap e grafite
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